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sábado, 19 de dezembro de 2009

Mito de Clarice se agiganta tanto quanto os romances que escreveu




“Clarice,” (assim mesmo, com a vírgula, numa referência ao estranho parágrafo inicial de um de seus romances), escrito pelo americano Benjamin Moser e publicado pela Cosacnaify, é o livro do Natal, das férias de verão e também – por que não? – o livro do ano. Indicado para quem gosta de biografias, um gênero ainda muito bem-sucedido nas livrarias reais e virtuais, deve ser devorado por quem gosta de literatura nacional ou universal e precisa ser descoberto por aqueles que simplesmente se deixam levar por um texto bem escrito.
Apesar das 648 páginas em papel pólen, da capa dura que lhe dá uma aparência solene e na qual só se vêem os dedos da escritora batucando uma máquina de escrever e da ausência quase total de imagens, a obra merece entrar na bagagem de qualquer leitor adulto. Apenas porque é um grande livro, em todos os sentidos.

Clarice Lispector (1920-1977) morreu quando Benjamin Moser tinha um ano de idade. Como muitos leitores ao longo das últimas décadas, Moser foi capturado pela ficção e pela mística de Clarice. Ela foi e ainda é o personagem mais misterioso da literatura brasileira, uma esfinge que o autor tentou desvendar com uma pesquisa de vários anos, entre viagens às diversas cidades do mundo por onde ela passou, na companhia do marido diplomata, e entrevistas com todas as pessoas importantes que a conheceram. Desse trabalho exaustivo surgiram algumas revelações.

Chamá-la pelo primeiro nome não é só um gesto característico de intimidade brasileira. Clarice Lispector parece falar ao coração de cada um dos seus leitores. Quem a lê também é convidado a preencher lacunas, usando a própria imaginação.

Ela foi uma vanguardista milagrosa já na estréia, aos 23 anos, com “Perto do Coração Selvagem”, o romance que inicia a sua busca por um significado, fosse ele artístico ou existencial, e que permitiu comparações com James Joyce. Moser dispõe os fatos com rigor, mas ao mesmo tempo os ilumina por meio de uma ideia central e muitas opiniões, o que retira qualquer frieza factual das coisas relatadas. De origem judaica, como a escritora que escolheu biografar, o biógrafo ata os fios partidos da história com essa perspectiva.

A Clarice de Moser é movida pela orfandade (perdeu o pai e a mãe ainda menina) e se divide entre os deveres de dona de casa e a carreira de escritora.

Foi também uma mulher à frente do seu tempo, separada, com dois filhos, ganhando a vida como jornalista e escrevendo uma ficção tão avançada que não só deslumbrava, mas assustava os contemporâneos, muito mais chegados a uma prosa de alcance social, em duas dimensões. Além de tudo, alta, loira, de beleza exótica e sotaque entre o russo e o pernambucano, ela era fisicamente uma atração.

A escritora deixou uma aldeia da Ucrânia ainda bebê, fugindo com a família dos pogroms soviéticos. Passou a infância no bairro judeu do Recife. “O que me mais me chamou a atenção no livro foi justamente a minúcia com que ele reconstrói esses inícios, tanto na Ucrânia como em Maceió e Recife. Também a reconstituição bem colorida e expressiva da comunidade judaica nesses lugares. E a intimidade que ele demonstra ter com o ambiente cultural brasileiro do século 20”, diz o tradutor José Geraldo Couto, que fez, aliás, um ótimo trabalho de adaptação do inglês para o português, sem perder a elegância e a naturalidade jamais.


Esse efeito, de uma cultura vista de fora por um olhar inteligente e acurado, é outro dos grandes trunfos do livro. Por “Clarice,” desfilam alguns dos personagens mais emblemáticos da cultura brasileira do século passado. E não só da cultura. O ex-presidente Jânio Quadros faz uma patética aparição num quarto de hotel, onde tenta agarrar a escritora e termina por rasgar-lhe o vestido.

O bebê e a salvação

A principal novidade revelada pela biografia é a história terrível do estupro da mãe de Clarice por soldados russos. Contraindo sífilis, ela passaria o resto da vida presa a uma cadeira de rodas. De acordo com a crença judaica, a vinda de um bebê poderia curar a mãe: Clarice nasce algum tempo depois e não consegue salvá-la. Segundo Moser, esta culpa primordial acompanharia a escritora por toda a vida, impregnando sua literatura.

Outro ponto sensível do livro diz respeito ao romance entre Clarice e o talentoso e problemático cronista e poeta mineiro Paulo Mendes Campos. Eles se apaixonaram e viveram um caso incandescente e rápido, que terminou mal para ela – Campos decidiu ficar com a mulher e os filhos, e os dois não se falaram mais. O jornalista Lucas Mendes divulgou involuntariamente a história de que teria havido censura na edição brasileira, atendendo a um pedido da família de Campos. Moser, de passagem pelo programa “Manhattan Connection”, apresentado por Mendes, teria comentado o romance dos dois escritores.

“Na conversa, ele disse que não queria ofender a mulher do Paulo e que tinha omitido a história na versão brasileira. Eu publiquei isto na coluna”, conta o apresentador. “Foi um erro, baseado num mal-entendido durante a entrevista. Pedi uma correção e ele o fez”, diz Moser. “Não houve censura, pelo contrário: este é o primeiro livro que conta essa história com detalhamento”, explica o editor Paulo Werneck, da Cosacnaify. “Era um segredo de polichinelo, ou nem isso, já que livros como ‘Ela é Carioca’, de Rui Castro, já o haviam mencionado. Benjamin pela primeira vez contou essa história de amor quase não consumada. Nenhuma das famílias exerceu pressão quanto a isso. Elas foram sensíveis à seriedade do trabalho”. Procurado pela reportagem do iG, Paulo Gurgel Valente, um dos filhos de Clarice, preferiu não comentar o assunto. O relato, discreto e curto, permaneceu na edição brasileira.

Outra das proezas de Moser é uma contradição. Se, por um lado, ele esclarece e ilumina passagens obscuras da vida de Clarice, por outro não consegue desmistificar a figura. É que a genialidade da escritora parece indomável. E sua vida se confunde com uma ficção estranhamente enraizada na vida real, sempre capaz de comover e subjugar a imaginação do leitor.

As críticas publicadas no exterior mostram um fenômeno em expansão. Clarice Lispector, espantosa nos mergulhos pessoais de uma literatura formidável e única, tende a assombrar cada vez mais os leitores de outros países. A partir de agora, não só pelas traduções que já foram feitas e tendem a se multiplicar. “Clarice,”, a biografia escrita com inteligência e sensibilidade por Benjamin Moser, é o livro perfeito para espalhar pelo mundo uma devoção que não para de crescer no Brasil.

3 comentários:

  1. Saudações Natalinas!
    Amigo Ivandro,
    Que Post Fantástico!

    Esse vale a pena adquirir... É uma história de vida marcada pelo profundo amor a vida e as letras.
    Gostei muito do seu texto.
    Parabéns pelo lindo Post!
    Abraços fraternos,
    LISON.

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  2. Clarice foi e continua sendo excepcional. Sim, quando se fala "Clarice" logo me vem ela na lembrança. Sobre o livro, a biografia (adoro ler essas coisas...) tão volumosa!!! Imagine só o que temos a saborear!

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  3. Clarice Lispector sempre será um ícone imortal
    da literatura. Não posso deixar de ler esta obra biográfica da escritora.
    Considero que os seus livros não são para entender e sim para sentir.
    Este INCÓGNITO espaço é maravilhoso, voltarei mais vezes.
    Abraços

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