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sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Nos caminhos da invenção


O prêmio Nobel de Literatura, todo ano, parece mandar sinais para o mundo. Pode confirmar uma tendência ou apontar nova direção, mesmo que controversa. Desta vez ele surpreendeu e saiu para a escritora romena Herta Müller, pouco conhecida no Brasil. Dela foi relançado seu único romance traduzido por aqui, O compromisso. No ano em que se comemoraram os 20 anos da queda do Muro de Berlim, o romancista Ingo Schulze, com Vidas novas, mostrou como a literatura pode escrever a história do nosso tempo com profundidade, sem precisar apelar para a ideologia. Foi uma indicação de que ficção e realidade estão cada vez mais fundidas na literatura contemporânea. E um sinal que sintetiza bem o ano literário.

Na prosa de ficção no Brasil, o livro de maior destaque foi o romance Leite derramado, de Chico Buarque. No monólogo de seu personagem, um homem velho e decadente que agoniza, a força da linguagem ancora uma visão profunda da formação brasileira e de seus descaminhos. Dois mestres octogenários voltaram a publicar este ano, Dalton Trevisan, com o livro de contos Violetas e pavões, mais político que nunca, e Rubem Fonseca, que mostrou pegada na novela O seminarista. Confirmando o posto de um dos mais interessantes escritores brasileiros, Alberto Mussa lançou Meu destino é ser onça, recriação preciosa de mitos indígenas.

O artista plástico Nuno Ramos venceu um dos mais importantes prêmios literários do Brasil, o Portugal Telecom, desbancando com seu inclassificável Ó nomes de ponta da literatura brasileira e portuguesa. Não se trata de um estreante, mas de um criador mais prestigiado no campo das artes visuais e mesmo da música popular. Foi um exemplo de que as fronteiras não seguram mais territórios defesos. Entre os novos, destaque para A passagem tensa dos corpos, de Carlos de Britto e Mello, que venceu o Prêmio Minas Gerais de Literatura, um romance forte e inventivo, com extrema maturidade no tratamento do tema da morte.

Para desanuviar, uma certeza gaiata: ninguém tira o título de livro mais divertido do ano de Reinaldo Moraes, com seu deboche épico Pornopopéia. Sexo, drogas e literatura, como os beats e Bukowski faziam. Só que muito mais engraçado

• Capítulos de vida
As biografias, que a cada ano conquistam mais leitores, tiveram também safra de qualidade. O mais impressionante de todos os trabalhos no gênero foi Clarice, do americano Benjamin Moser. Além de reconstituição da vida da escritora, com revelações importantes de sua infância e juventude, o livro apresenta uma interpretação sofisticada de sua literatura, com ênfase na marca da cultura judaica na visão de mundo da escritora. Lira Neto lançou o excelente Padre Cícero – Poder, fé e guerra no sertão, que equilibra o lado místico e político do religioso nordestino. A vida de Mário de Andrade foi tema de dois livros importantes, a autobiografia imaginária Pauliceia dilacerada, de Mário Chamie, e a reunião das cartas trocadas entre o escritor paulista e Pio Lourenço Corrêa entre 1937 e 1945, reunidas no belo volume Pio & Mário, diálogo da vida inteira.

• Ano de Euclides
A lembrança do centenário de morte de Euclides da Cunha deu origem a uma série de lançamentos de qualidade, a começar pela nova apresentação da obra completa do autor de Os sertões pela Nova Aguilar, substancialmente aumentada em relação à anterior. Parte menos conhecida da obra do escritor, os versos de Euclides da Cunha ganharam livro organizado por Leopoldo Bernucci e Francisco Foot Hardman, Poesia reunida, com cuidadoso aparato crítico. No campo dos ensaios sobre o autor destacam-se Euclidianos e conselheiristas – um quarteto de notáveis, organizado por Walnice Nogueira Galvão, que também lançou a coletânea Euclidiana – Ensaios sobre Euclides da Cunha. A relação de Euclides com a Amazônia é tema de A vingança da hileia, de Francisco Foot Hardman. A historiadora Mary del Priore voltou ao drama da morte do escritor em Matar para não morrer, que gerou polêmica pela ameaça de censura familiar que vem, tristemente, rondando a inteligência brasileira.

• Tempo de evolução
As publicações sobre ciência também conquistaram espaço. O bicentenário de Darwin motivou o lançamento de estudos na área da chamada alta divulgação científica, produzida por pensadores interessados em se comunicar com o leitor não técnico. Os melhores foram O maior espetáculo da Terra – As evidências da evolução e A grande história da evolução, ambos de Richard Dawkins, que deixou sua cruzada antirreligiosa de lado para mostrar o que faz de melhor, e O que é evolução, de Ernst Mayr, o mais importante evolucionista do século passado. Duas ciências que nem sempre têm status reconhecido foram alvo de bons livros, O andar do bêbado – Como o acaso determina nossas vidas, de Leonard Mlodinow; e Em busca da memória, de Eric R. Kandel, que pode falar com autoridade em primeira pessoa sobre o nascimento da ciência da mente. Livro rico em informação, para chegar ao estudo da memória mostra um caminho que passa pela psicanálise, psicologia cognitiva, neurociência e biologia molecular.

• Volta ao mundo
Quem quiser conhecer o mundo pode se sentar na poltrona. Os lançamentos internacionais este ano apresentaram obras de grande qualidade e reveladoras de múltiplas culturas. Da Nigéria vem O mundo se despedaça, de Chinua Achebe, um dos mais importantes escritores africanos da atualidade. O egípcio Alaa Al Aswany chega aos leitores brasileiros com O edifício Yacubian, uma metáfora da sociedade de seu país. Da literatura árabe para a judaica, destaque para o melancólico Cenas da vida da aldeia, de Amós Oz, e A mulher foge, de David Grossman. Ainda na mesma inspiração, Philip Roth teve lançado no Brasil o amargo romance Indignação. O incansável português José Saramago, aos 87 anos, tascou logo dois livros este ano: a reunião de textos de seu blog em O caderno e o romance iracundo contra Deus, Caim, que tem raiva, mas não perde o humor. O melhor lançamento de autor estrangeiro fica com os três volumes das entrevistas de Jorge Luis Borges a Osvaldo Ferrari.

• Feitos para pensar
A morte de Claude Lévi-Strauss deixou o mundo menos inteligente. No entanto, o legado da geração que bebeu em sua fonte manteve o interesse, como atestam duas publicações de referência, o Vocabulário de Foucault, de Edgardo Castro, um completo estudo do sistema do mais antissistemático dos pensadores contemporâneos, e a nova edição do fundamental Deleuze, arte e filosofia, de Roberto Machado. O pós-estruturalismo se mostra não apenas vivo e atual, como limpo das marcas pedantes de seus epígonos. No campo da sociologia política, Demétrio Magnoli lançou Uma gota de sangue – História do pensamento racial. Pode-se discordar do autor, mas sua argumentação é sólida e sua erudição sobre o tema coloca um desafio intelectual aos defensores da política de cotas e das ações afirmativas. Cidade de quartzo, de Mike Davis, faz do estudo da cidade de Los Angeles uma arqueologia dos impasses da contemporaneidade. A psicanalista Maria Rita Kehl tirou a depressão do divã e a colocou no olho da rua como um sintoma social do qual ninguém está protegido, no melhor ensaio do ano

2 comentários:

  1. Saudações Fraternas!
    Amigo Ivandro
    Que Post Fantástico!

    A cada Post neste seguimento fico impressionado com a sua leitura crítica sobre o fascinante mundo da literatura!
    Esse é um super texto e vale a pena ler de novo!

    Parabéns pelo magnífico Post!
    Abraços fraternos,
    LISON.

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  2. Um post primoroso.
    Parabens!

    Abraço
    Serenissima

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